Na formatura de Direito da PUC-SP, Michele Alves, de 23 anos, filha de empregada e egressa de escola pública, falou sobre as dificuldades dos bolsistas na universidade.
No terceiro dia de aula na PUC São Paulo, Michele Alves ouviu uma professora de Direito Civil dizer aos alunos que não se preparassem para as provas apenas com base nos pequenos resumos que estão no início dos livros acadêmicos porque “até a filha da empregada que faz Direito na ‘Uniesquina’ estuda por sinopse”.
Michele, que é filha de empregada doméstica, saiu da sala para chorar no banheiro. Ligou para a mãe, Celma, de 40 anos, que chorou junto com ela. Durante as lágrimas compartilhadas, Michele quis desistir da faculadade. A mãe não deixou e a convenceu a resistir.
Cinco anos depois, Michele, de 23 anos, decidiu contar essa história diante de um auditório lotado no Citibank Hall. O discurso, gravado em vídeo, viralizou na internet e, desde a formatura, Michele diz ter recebido muitas mensagens de agradecimento, apoio e também de ódio por ter compartilhado as dificuldades e o preconceito enfrentado pelos bolsistas de famílias pobres com pouco estudo que conseguem chegar à faculdade.
“O discurso foi escrito por mim, mas essa história não é só minha”, disse à BBC Brasil, por telefone, repetindo trecho do discurso no qual falou em nome dos bolsistas formandos da PUC São Paulo, os “filhos e filhas do gari, da faxineira, do pedreiro, do motorista e da mãe solteira”.
Muita gente a aplaudiu de pé na noite da formatura. Mas ela mesma diz que muitos ficaram incomodados. A agora recém-formada em Direito não citou o nome da professora no discurso nem fala quem é, mas diz ter ficado sabendo que ela estava na cerimônia. G1
“Nem sei se ela tem consciência do que fez. Mas o que professor diz na sala de aula tem um impacto muito grande, eu nunca esqueci. Marcou minha vida”, contou, ponderando que teve “professores maravilhosos também”.
Depois das lágrimas, as palavras da professora a fizeram tentar motivar amigos e vizinhos. “Passei a dizer às pessoas que não podem desistir, que têm que ocupar os espaços”.
Filha de mãe solteira, Michele nasceu na Bahia e foi a primeira da família a entrar na faculdade. Quando conseguiu a vaga, tinha notícia apenas de uns primos distantes que fizeram curso superior.
Em 2007, quando tinha 12 anos, ela saiu da zona rural de Macaúbas (BA) com a mãe para fazer um tratamento médico em São Paulo. “Tive uma depressão saindo da infância”, contou. A irmã dela e o avô deixaram a Bahia meses depois para se juntar a elas.
Hoje ela vive com eles e com o padrasto em Itapevi, na região metropolitana de São Paulo. Trabalha em um escritório com direito administrativo e constitucional.
Apesar de admitir que vive um momento de incerteza, Michele diz estar decidida a inspirar alunos de escola pública. “Estão me convidando para falar em escolas públicas e eu vou com prazer”.
Michele estudou a vida toda em escola pública. Fez um cursinho popular e ganhou uma bolsa para fazer outro e perseguir o sonho de entrar na faculdade, ainda que a família achasse que era “loucura e coisa de rico”.
O Direito, contudo, não foi a primeira opção de Michele. Achava que a nota de corte era alta demais para ela. Primeiro ela foi para PUC Campinas cursar Ciências Sociais. Mas, durante o primeiro semestre, viu despertar o interesse por temas mais alinhados ao estudo do Estado. Um professor acabou a estimulando a mudar de curso.
Ela acabou passando para a PUC São Paulo e para a Universidade Federal do Rio. Preferiu ficar perto da família.
Sem dinheiro para o lanche
O choque ao pisar no campus da PUC na capital paulista, diz Michele, foi muito grande. “Por causa da burocracia, entrei um mês depois de as aulas terem começado. Mas era completamente diferente”, recorda, dizendo no curso de Ciências Sociais em Campinas era muito menos elitizado e o número de bolsistas era muito maior.
No começo, não fez nenhum amigo no Direito – se relacionava com bolsistas de outros cursos, em especial da Economia. Ouvia os colegas de sala falando de viagens à Europa, de festas de R$ 300. “E eu mal tinha dinheiro para comprar o lanche”.
Não tinha também roupa social para ir às aulas que exigiam traje específico nem para as entrevistas de estágio. “Devo muito à família para quem minha mãe trabalhou, porque eles doaram algumas roupas”.
A mãe de Michele trabalhou a vida toda na casa da mesma senhora, que morreu no ano passado. Agora, ela está com o irmão da antiga patroa. “Eles sempre foram muito bons pra gente”.
Quando conheceu os bolsistas de Direito, diz que vida ficou melhor. Eles doavam livros, tinham dicas de estágios que eram menos rigorosos para selecionar candidatos que determinados escritórios e não exigiam, por exemplo, nível avançado de inglês – que segundo ela é, talvez, um das maiores dificuldades para os bolsistas.
Ao longo do curso, conseguiu estágios que pagavam melhor que o salário da mãe ou a aposentadoria do avô. Conseguiu até fazer intercâmbio, graças a uma bolsa, na Universidade Católica da Argentina.
Estranhos
Michele admite que ela era mais radical e mais fechada no começo do curso. “Não conseguia chegar perto das pessoas que não tinham a mesma realidade que eu. Eu era tão estranha para eles quanto eles eram para mim”, disse.
Com o tempo ela conta que aprendeu a “mudar o nível de radicalidade”. “Tem hora que tem que ser mais incisivo”, diz, acrescentando que, além de encontrar tom adequado, o mais importante é encontrar a hora certa de falar verdades.
A formatura foi um desses momentos. Diz que a participação dos bolsistas foi negociada com a comissão que organizou o evento. Ganharam ingressos e o direito de fazer um discurso.
“Não esperava reação positiva por parte dos colegas. Tem gente falando que 90% aplaudiu de pé, e não acho que foi tudo isso. Eu fiquei tão atordoada que não observei. Mas sei que muita gente se sentiu incomodada, que virou tema de debate em família.”
Valsa
Michele discursou e foi ao baile também. Dançou valsa com a mãe que, segundo ela, ficou muito assustada com o barulho que as palavras de Michele está fazendo as redes sociais a ponto de pedir à filha para dar um tempo e parar de ler todos os comentários que tem recebido.
Além dos elogios e cumprimentos, Michele tem lido na internet comentários que, de certa forma, reproduzem o discurso preconceituoso e discriminador similar ao que enfrentou durante os anos de faculdade.
Em relação aos colegas, pondera que não sabe se as recorrentes “piadas sobre pobres e as críticas sobre as esmolas do governo”, para citar as palavras que usou no discurso, eram conscientes. “Muitas daquelas pessoas não tiveram contato com pessoas como eu, com uma história de luta social, não tiveram a mesma realidade”, diz, dando o beneficio da dúvida aos que estudaram com ela.
Mas Michele rejeita o papel de vítima: “Fui protagonista”.
E o futuro? Para Michele, ainda é incerto. Ela gosta do trabalho que faz no escritório de advocacia, mas pensa em tentar ser defensora pública. No entanto, diz que não tem condições de parar de trabalhar para estudar para o concurso.