Blog do Jorge Amorim

Pobres de SP passam fome com dieta repetida e dependência de doações

Moradores do Morro da Mutuca, em Parelheiros, na zona sul de São Paulo, se aglomeram para receber doações de alimentos; maioria das famílias depende de ações como essa para ter o que comer

Famílias que vivem nos bairros mais pobres de SP que tem pouco acesso a alimentaçao de qualidade. Na foto, distribuição de alimentos no bairro Barragem, em Parelheiros. 19/10/2017

Dias atrás, quando anunciou que um produto “abençoado” feito à base de alimentos prestes a irem para o lixo seria oferecido a “pessoas que passam fome” em São Paulo, o prefeito João Doria (PSDB) não só pegou de surpresa sua própria equipe como deixou uma dúvida: quem não teria o que comer na cidade mais rica do país?

Nem o staff do tucano tem essa resposta. O argumento da gestão é que apenas uma pesquisa poderá indicar os rumos de um programa de distribuição de alimentos que inclua a farinata –o produto anunciado pelo prefeito.

O fato é que Doria errou na propaganda, já que anunciou algo sem nenhum estudo em mãos e enfrentou duras críticas por causa disso, mas acertou no diagnóstico: a realidade nos rincões de pobreza do município é de famílias inteiras que vivem à base de uma dieta pobre, repetitiva e industrializada, isso quando têm acesso a algum tipo de alimento. Há fome.Folha percorreu diferentes pontos da metrópole e encontrou realidades que revelam o quanto a falta de comida assombra os lares de quem vive nos extremos, onde o alimento bom não chega.

Essas pessoas não sabem o que comerão no dia seguinte, o que inclui crianças sem café da manhã e que almoçam e jantam macarrão instantâneo, e pai, mãe e filhos que passam o dia à base de arroz. Só arroz.

Elas se enquadram, segundo classificação do IBGE, na chamada insegurança alimentar grave. Estão nessa condição de instabilidade nutricional famílias sujeitas a privação de alimentos, cujo grau mais extremo é a fome. *Folha de São Paulo

Casos como o da família do desempregado Jeferson Oliveira, 29, que vive num minúsculo barraco com sua mulher e dois filhos, de 9 e 10 anos. Ali, na favela do Cimento, zona leste, tem almoço que “é só feijão” ou a refeição do dia todo é o macarrão instantâneo, tudo feito num fogão improvisado com pedras e álcool.

A 45 km dali, no Grajaú, zona sul, a ajuda de vizinhos ou de entidades vai permitir um pouco de arroz à família da também desempregada Ivone de Fátima, 39. Ela evita cozinhar feijão para não gastar o gás –o botijão custa R$ 80.

Jeferson e Ivone fazem parte das 50 mil famílias na cidade em situação de risco de desnutrição, segundo o Mapa da Insegurança Alimentar elaborado em 2014 pelo Ministério do Desenvolvimento Social (esses são os números oficiais mais recentes).

O estudo é baseado na situação de famílias incluídas no cadastro de programas sociais do governo federal. A pesquisa leva em consideração o índice de desnutrição de crianças menores de 5 anos que são acompanhadas pelo programa Bolsa Família.

“Numa interpretação razoavelmente segura, pode-se afirmar que insegurança alimentar grave e fome coexistem”, explica Semíramis Martins Domene, professora de nutrição da Unifesp da Baixada Santista, litoral de SP.

Essa realidade é corroborada por números levantados pela Folha com base em dados do Datasus sobre mortes por desnutrição na cidade.

De 2005 a 2015, 1.750 pessoas morreram por consequências da falta de nutrientes. A maioria, 85%, são pessoas com mais de 50 anos que tiveram como causa primária do óbito a má alimentação. Apesar de não detalhar as circunstâncias dessas mortes, que podem incluir casos de patologias que causam má absorção ou dificuldade de alimentação, esses números são os mais próximos disponíveis da realidade da fome na cidade.

“A desnutrição é pano de fundo para uma série de doenças infecciosas que têm uma mortalidade maior. Aumentam as chances de morrer por pneumonia ou diarreia, por exemplo”, diz Maria Paula de Albuquerque, gerente clínica da associação Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional).

A falta de dados que deem a dimensão de quantas pessoas passam fome no município é mais um indício da forma como o assunto é tratado pelas autoridades, segundo André Luzzi, conselheiro da ONG Rede Cidadã Contra a Fome. “Falta de informação dificulta as ações.”

A responsabilidade pelo combate à fome é das três esferas de governo. A União repassa dinheiro para distribuição de renda, enquanto Estados e municípios precisam ter políticas de entrega de alimentos de qualidade.

FARINHA E PIPOCA

Doria apostou na farinata como uma das políticas para amenizar o drama da fome. O pó é feito com diversos produtos vindos de empresas alimentícias e na iminência de serem incinerados. Ele apresentou também o granulado, um subproduto da mesma farinha com cara de pipoca, mas saudável, segundo comparação feita por Rosana Perrotti, dona da empresa Plataforma Sinergia, criadora da ideia.

Ele anunciou que começaria a distribuição pelas escolas municipais, mas voltou atrás no dia seguinte.

“Difícil achar que algo que vai vencer pode ter boa qualidade. É misturar tudo o que não sabemos o que é e fazer algo que parece comida, mas não é. Isso não é necessário num país que bate recordes de produção agrícola”, disse a nutricionista da Unifesp.

Franciane Lopes de Souza, nutricionista que participa do projeto sobre a farinata, afirma que a ideia é viável. Ela atua agora no balanceamento do produto do ponto de vista nutricional.

DESNUTRIÇÃO

Na Brasilândia, uma mulher revira a caçamba de lixo em busca de comida e se afasta quando cachorros começam a disputar um saco de lixo recém-rasgado.

A poucos metros, a dona de casa Tatiana Diniz Souza, 34, ajuda o marido a montar um barraco à beira do córrego do Bananal, para onde escorre o esgoto das casas de alvenaria construídas na margem oposta. O cansaço só não é maior do que a fome. “Não almocei hoje, a comida que tinha dei para as crianças”, diz ela, que é mãe de quatro.

O bairro no extremo norte da cidade é um dos que mais sofrem com a desnutrição. Lá moravam 9 das 105 crianças de até 14 anos que morreram em decorrência da inanição de 2005 a 2015, segundo levantamento feito pela Folha com dados do Datasus.

Enquanto Tatiana conta sua história, a vizinha Maria Amélia da Penha, 32, se aproxima e também compartilha sua realidade. Ela conta que não faz ideia do que irá comer no dia seguinte e muito menos seus cinco filhos, incluindo o bebê de 1 ano. “Ontem a vizinha me emprestou uma xícara de arroz para dividirmos em seis. Tem dez meses que não tenho dinheiro para ir ao mercado”, diz.

A 47 km dali, no Grajaú, a situação é parecida. O bairro na periferia da zona sul aparece em terceiro lugar no ranking de mortes de menores de 14 anos por desnutrição com sete casos de 2005 a 2015.

Esses números não incluem as circunstâncias da morte, como doenças que causam má absorção e não têm ligação necessariamente com a fome, mas são os mais próximos disponíveis para retratar a falta de alimentos.

Na casa da moradora Ivone de Fátima Gonçalves, 39, a filha Maisa, 5, almoça na escola, mas sempre chega com fome em casa. Na semana passada, ela tinha banana para dar de lanche à menina, mas nem sempre é assim.

“Falta o que comer”, diz ela, que conseguiu um cacho da fruta na associação Mulheres do Grajaú, que distribui alimentos doados. “Ganho feijão na cesta básica, mas não cozinho muito para economizar o gás”, explica.

O pacote de feijão só aparece na despensa de Camila Oliveira, 35, porque os moradores da ocupação Jardim da União, também no Grajaú, onde ela mora, fizeram uma vaquinha para lhe comprar mantimentos.

Mãe de dois filhos, ela recebeu a reportagem depois de tentar convencer a filha que não tinha mais da vitamina que ela tinha acabado de fazer. “Só tinha um pouco de leite, ela tomou e acabou. Agora quer mais, mas não tem.”

A situação é melhor na vizinha Francisca Cidiane, 32, que tinha acabado de dar arroz, feijão e carne de almoço para os quatro filhos. Mas nem sempre foi assim. “Teve dias que só tínhamos banana verde cozida na panela de pressão para comer”, lembra.

DOAÇÕES

Basta uma buzinada para os moradores do Morro da Mutuca, em Parelheiros, no extremo da zona sul, saírem de seus barracos e tomarem a rua de terra. O som anuncia a chegada de doações e provoca correria e ansiedade.

As mulheres logo se enfileiram atrás da pick-up que traz cestas básicas, cobertores, litros de leite e pirulitos. A líder comunitária Marta de Jesus Pereira tenta organizar como pode a distribuição. “Falta tudo para essas famílias.”

A dona de casa Nadia Virginia dos Santos, 43, comemora o fardo com mantimentos que conseguiu pegar, mas não por muito tempo. Sua preocupação é com a alimentação do caçula Erenildo, 5, que sofre de constipação crônica e pedras nos rins. Ele não pode comer gordura e só se alimenta de grãos integrais.

Como esses itens são caros, ela gasta quase todo o orçamento da família para manter a dieta do menino e sobra pouco para dar de comer para os outros dois filhos menores. As crianças almoçam na escola, e a cesta que conseguiu pegar dura no máximo duas semanas. “Sempre faltam verduras e a mistura. Adoro fruta, mas nunca dá para comprar”, diz ela.

Ela critica a farinata proposta pela gestão Doria. “Tem que ser comida de verdade.”

Na casa vizinha, Germinia Pereira de Moraes, 54, se emociona ao falar da dificuldade em alimentar os três filhos. Ela abre a despensa e mostra o pacote de arroz pela metade, o único mantimento no armário. “Tem noites que não durmo pensando no que vamos comer no dia seguinte”, diz Germinia.

A única fonte de renda da família são os bicos que ela faz em um sítio próximo. “Trabalho na enxada e me doem as costas. A médica diz que eu tenho que tomar o remédio com leite para não doer o estômago, mas não dá para comprar”, diz ela, ao mostrar as mãos calejadas.

Para André Luzzi, conselheiro da ONG Ação da Cidadania contra a Fome, relatos como os descritos acima caracterizam situações de fome. “É grave quando a pessoa não tem segurança da regularidade com que vai se alimentar novamente.”

A incerteza em relação ao que vai colocar no prato dos dez filhos é constante na casa de Valdeilma Alencar da Silva, 40, também moradora do Morro da Mutuca.

Uma das crianças lhe pediu para comer um tomate, um dos poucos legumes que ainda restavam na geladeira para ela cozinhar uma sopa. Os alimentos são doados por feirantes em Parelheiros, onde ela faz bico aos finais de semana ajudando a montar as barracas e olhar os carros dos frequentadores.

Ela junta os legumes com a cesta básica que ganha uma vez por mês da igreja que frequenta. A família numerosa acaba com os mantimentos em duas semanas. “Quando acaba, invento sopas e peço sobras de pães na padaria.”

As crianças saem de casa para a escola sem comer nada e dependem da merenda para almoçar. “A vida é muito estreita”, diz a mãe.

VIADUTO

O casal de desempregados Jeferson Oliveira da Silva, 29, e Kátia Regina de Araújo, 36, nunca sabe ao certo como serão as refeições do dia. Eles vivem na comunidade do Cimento, à beira da Radial Leste, junto do viaduto Bresser, onde cerca de 500 moradias improvisadas com madeira formam a favela.

A renda por meio do programa Bolsa Família, de aproximadamente R$ 200, não garante as três refeições diárias para a família, que inclui os filhos Lucas, 10 e Gabriel, 9.

É na escola em que estudam que os meninos encontram cardápios balanceados no café da manhã e no almoço. Quando não estão em dia de aula, a dúvida persiste.

“Hoje eu comi só feijão mesmo. Os meninos comeram miojo agora, mas vão comer de novo na janta”, disse Silva. Naquele dia, eles faltaram no colégio.

Do barraco ao lado vinha um agradável cheiro de alho frito na panela. Ali um homem preparava a refeição do dia: arroz, feijão e couve. A reportagem perguntou ao vizinho se ele costumava dividir com os demais moradores. “É difícil, não tem muito. Aqui é meio cada um por si”, disse.

Sobre a farinata que Doria cogita oferecer como complemento alimentar, Silva diz que até aceita provar. “Comida a gente quer. A gente tem fome, o que vier é lucro.”

Outros moradores da comunidade rechaçam a ideia, mesmo sem conhecê-la em detalhes. “Eu não como resto feito com comida vencida. A gente precisa de comida. Prefiro comer a bolacha que comi no almoço”, disse a desempregada Poliana, 23.

OUTRO LADO

A gestão João Doria (PSDB) diz ter uma série de ações para distribuição de alimentos in natura e promete ampliá-las. Assim, busca amenizar a polêmica em torno da farinata, que passou a ser tratada como política secundária.

“Estendemos o programa de hortas urbanas e temos uma política de apoio aos agricultores na área rural [em Parelheiros, no extremo sul]”, disse a secretária municipal do Trabalho e Empreendedorismo, Aline Cardoso.

Outra medida, segundo a secretária, é um programa de combate ao desperdício, iniciado no mercado Kinjo Yamato, ao lado do Mercadão. Em dez dias, diz a prefeitura, foi arrecadada 1,2 tonelada de frutas, legumes e verduras.

A ideia é que os produtos de qualidade que restaram nas gôndolas ao final do dia sejam encaminhados a entidades, que, por sua vez, distribuirão às pessoas carentes.

A administração diz que melhorou o apoio à agricultura familiar, por meio do atendimento técnico a cem agricultores familiares e da oferta de maquinário para plantio. Também prevê o mapeamento de 150 hortas urbanas, entre públicas e privadas. Diz ainda que vai ampliar a compra de produtos orgânicos ou vindos de agricultura familiar para a merenda escolar.

Segundo a prefeitura, tudo faz parte do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional e será discutido na câmara técnica municipal responsável, em reunião na próxima quarta-feira (1º). A Folha mostrou na semana passada que o grupo, que envolve várias secretarias, não se reúne há 11 meses.

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social diz que são distribuídas 367.152 refeições por dia em centros de acolhida.

Já o governo Geraldo Alckmin (PSDB) afirma apostar nos 22 restaurantes populares da rede Bom Prato (que oferece refeições a R$ 1), no Programa Vivaleite e em ações de apoio a agricultores. No Bom Prato, são 38 mil refeições diárias na capital, segundo a gestão tucana.

Já o Vivaleite distribui anualmente na cidade 17 milhões de litros do produto, diz a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social. O leite é oferecido a cerca de 43 mil crianças e 54 mil idosos por mês. “Há toda uma estrutura montada para não permitir que ninguém chegue numa situação de fome”, afirma o secretário Floriano Pesaro.

Ele inclui nesse processo o o programa estadual Renda Cidadã, que tem meta de atender 12.560 pessoas em 2017.

A Secretaria Estadual de Agricultura diz que investe na criação de hortas urbanas, na capacitação de pessoas para conscientização sobre alimentação saudável e em feiras de orgânicos com itens vendidos direto do produtor, mais baratos.

O Ministério do Desenvolvimento Social citou o programa de distribuição de renda Bolsa Família –com 466,6 mil famílias beneficiadas na cidade– como um dos mecanismos adotados pelo governo federal para reduzir os índices de desnutrição no país.

Além disso, o ministério elenca outras iniciativas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que transfere recursos aos municípios para reforçar a merenda, e o acompanhamento nutricional feito por estabelecimentos de saúde nas cidades.

 

 


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